Três apitos
Letra
Quando o apito da fábrica de tecidos Vem ferir os meus ouvidos Eu me lembro de vocêMas você anda Sem dúvida bem zangada E está interessada Em fingir que não me vêVocê que atende ao apito de uma chaminé de barro Por que não atende ao grito Tão aflito Da buzina do meu carroVocê no inverno Sem meias vai pro trabalho Não faz fé com agasalho Nem no frio você crêMas você é mesmo artigo que não se imita Quando a fábrica apita Faz reclame de vocêNos meus olhos você lê Que eu sofro cruelmente Com ciúmes do gerente Impertinente Que dá ordens a vocêSou do sereno, poeta muito soturno Vou virar guarda-noturno E você sabe por quêMas você não sabe Que enquanto você faz pano Faço junto do piano Estes versos pra você
História da Canção
"Três Apitos" é uma das obras mais emblemáticas de Noel Rosa, lançada em 1933, um período de efervescência e transformações sociais no Rio de Janeiro e no Brasil. A canção é um retrato pungente da modernização e da industrialização, que, ao lado do urbanismo crescente, redefinia o cotidiano e as relações humanas.
A letra, com a genialidade peculiar de Noel, narra a perspectiva de um poeta boêmio e apaixonado, que se vê confrontado com a nova realidade de sua amada: uma mulher que trabalha na fábrica de tecidos. O apito da fábrica, que "vem ferir os meus ouvidos", não é apenas um som, mas o símbolo de um mundo novo, estruturado e barulhento, que contrasta com a serenidade do samba e da boemia que o poeta representa.
Noel tece uma crítica social sutil, mas profunda. Enquanto a mulher se integra ao mundo fabril, "atende ao apito de uma chaminé de barro" e "faz pano", o poeta se sente alijado, relegado ao seu "piano". A canção explora o tema do ciúme – "Com ciúmes do gerente impertinente que dá ordens a você" – que não é apenas romântico, mas também um ciúme do novo poder e da influência que o ambiente de trabalho industrial exerce sobre sua amada, tirando-a de seu universo.
A modernidade impõe novos ritmos, novas vestimentas ("no inverno sem meias vai pro trabalho"), e até mesmo uma nova crença, ou a falta dela, em face do frio e da necessidade. O poeta, em sua tentativa desesperada de se manter presente, cogita "virar guarda-noturno", um último recurso para estar próximo e vigiar o objeto de sua afeição e preocupação. Noel Rosa, com sua ironia e sensibilidade únicas, conseguiu eternizar o choque cultural entre a velha boemia e o avanço industrial, e o impacto dessas mudanças nas relações mais íntimas.
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