Composição de 1932

Minha Viola

Letra

Minha viola
Ta chorando com razão
Por causa duma marvada
Que roubou meu coraçãoEu não respeito cantadô que é respeitado
Que no samba improvisado me quisé desafiá
Inda outro dia fui cantá no galinheiro
O galo andou o mês inteiro sem vontade de cantá
Nesta cidade todo mundo se acautela
Com a tal de febre amarela que não cansa de matá
E a dona Chica que anda atrás de mal conselho
Pinta o corpo de vermelho
Pro amarelo não pegáEu já jurei não jogá com seu Saldanha
Que diz sempre que me ganha
No tal jogo do bilhar
Sapeca o taco nas bola de tal maneira
Que eu espero a noite inteira pras bola carambolá
Conheço um véio que tem a grande mania
De fazê economia pra modelo de seus filho
Não usa prato, nem moringa, nem caneca
E quando senta é de cueca
Prá não gastá os fundilhoEu tive um sogro cansado dos regabofe
Que procurou o Voronoff, doutô muito creditado
E andam dizendo que o enxerto foi de gato
Pois ele pula de quatro miando pelos telhado
Adonde eu moro tem o Bloco dos Filante
Que quase que a todo instante um cigarro vem filá
E os danado vem bancando inteligente
Diz que tão com dor de dente
Que o cigarro faz passá

História da Canção

"Minha Viola" é um samba que personifica a genialidade observacional e a verve crítica de Noel Rosa, apresentando um verdadeiro mosaico de personagens e situações do Rio de Janeiro da década de 1930. A canção começa com uma melancolia tipicamente sambista – a viola que chora por um amor perdido, a "marvada que roubou meu coração" – mas logo transita para uma série de vinhetas humorísticas e ácidas que desnudam o cotidiano carioca.

Noel exibe seu lado malandro e desafiador ao se gabar de silenciar outros cantadores e até um galo com sua superioridade musical. Em seguida, aborda com ironia um tema sério da saúde pública da época: a febre amarela. A solução supersticiosa da Dona Chica, que "pinta o corpo de vermelho pro amarelo não pegá", é um retrato hilário e, ao mesmo tempo, melancólico da desinformação e do desespero popular.

O samba prossegue com a frustração do narrador em um jogo de bilhar contra o esperto Seu Saldanha, que manipula as regras a seu favor. A figura do "véio que tem a grande mania de fazê economia" é um dos pontos altos da crítica social de Noel, ao descrever um personagem tão sovina que "não usa prato, nem moringa, nem caneca" e senta "de cueca prá não gastá os fundilho", expondo a excentricidade ou a miséria de forma cômica.

A canção também faz uma referência perspicaz ao Dr. Serge Voronoff, um cirurgião russo famoso por seus polêmicos enxertos de glândulas de macaco (ou, no caso do samba, "de gato") em seres humanos, na esperança de rejuvenescer. O desfecho da cirurgia do sogro, que acaba "pulando de quatro miando pelos telhado", é um sarcasmo genial sobre a charlatanice e a busca vã pela juventude eterna.

Finalmente, Noel pinta o quadro do "Bloco dos Filante", os pedintes de cigarro que inventam desculpas esfarrapadas ("dor de dente que o cigarro faz passá") para justificar o vício. "Minha Viola" é, portanto, muito mais que um samba de desamor; é um documento histórico e social, permeado pelo humor inteligente e a observação aguçada que fizeram de Noel Rosa um dos maiores cronistas de sua época.

Tópicos Relacionados

#Noel Rosa#Samba#História do Samba#Malandragem#Crítica Social#Cotidiano Carioca#Música Brasileira#Anos 30#Voronoff#Febre Amarela

Conheça outras obras

Mais crônicas e versos do Poeta da Vila o aguardam no acervo.

Explorar o Acervo Completo