De qualquer maneira
Letra
Quem tudo olha quase nada enxerga Quem não quebra se enverga A favor do vento Eu não sou perfeito Sei que tenho de pecar Mas arranjo sempre um jeito De me desculparEu lá na Penha agora vou estifa Mas não vou como um cafifa Que foi lá desacatar Mas a força falha Ele teve um triste fim Agredido a navalha Na porta de um botequimPra ver a minha santa padroeira Eu vou à Penha De qualquer maneiraFaz hoje um mês que fui naquele morro E a Juju pediu socorro Lá da ribanceira Toda machucada Saturada de pancada Que apanhou do seu mulato Por contar boatoMeu coração bateu a toda pressa E eu fiz uma promessa Pra mulata não morrer Pela padroeira Ela foi bem contemplada Levantou do chão curada Saiu sambando fagueiraEu vou à Penha de qualquer maneira Pois não é por brincadeira Que se faz promessa E o tal mulato Para não entrar na lenha Fez comigo um contrato Pra sumir da PenhaQuem faz acordo não tem inimigo A mulata vai comigo Carregando o violão E com devoção Junto à santa milagrosa Vai cantar meu samba prosa Numa primeira audição
História da Canção
Noel Rosa, o poeta da Vila, possuía uma habilidade ímpar em capturar a alma do Rio de Janeiro em suas letras, e "De Qualquer Maneira" é um testemunho vívido dessa maestria. Lançada em 1936, a canção não é apenas um samba, mas um minucioso painel social que reflete o cotidiano carioca da época, com suas mazelas, sua fé e sua inconfundível musicalidade.
A letra se inicia com uma reflexão filosófica sobre a adaptabilidade e a percepção ("Quem tudo olha quase nada enxerga / Quem não quebra se enverga / A favor do vento"), para em seguida nos transportar para a região da Penha, um local de forte apelo religioso e também palco de incidentes urbanos. O narrador, ao declarar que vai à Penha "estifar" (divertir-se, mas de forma digna), contrasta-se com um "cafifa" que, por desacatar, teve um "triste fim" agredido a navalha na porta de um botequim – um retrato cru da violência que permeava a vida nas ruas.
O coração da narrativa, contudo, reside na história de Juju. Após um mês, o narrador retorna ao morro e encontra a mulata "toda machucada / Saturada de pancada" por seu mulato, que a agrediu "por contar boato". Este trecho chocante lança luz sobre a violência doméstica, uma realidade muitas vezes silenciada, e os motivos banais que podiam deflagrá-la. A compaixão do protagonista é imediata, e ele faz uma promessa à Nossa Senhora da Penha para que Juju não morra. A intervenção divina, atribuída à padroeira, resulta em uma recuperação milagrosa: Juju "levantou do chão curada / Saiu sambando fagueira", conectando a fé popular à alegria contagiante do samba.
A promessa à santa, feita com seriedade ("não é por brincadeira que se faz promessa"), leva o narrador a uma solução inusitada. Em vez de confronto direto, ele demonstra a típica malandragem carioca e a inteligência pragmática de Noel ao fazer um "contrato" com o mulato agressor, garantindo que ele "sumisse da Penha" para não "entrar na lenha" (evitar problemas mais graves). O samba culmina na imagem da mulata curada acompanhando o narrador, carregando o violão, para cantar o "samba prosa" junto à santa milagrosa, em uma fusão perfeita entre o sagrado e o profano, a devoção e a arte popular que tanto caracterizavam a obra de Noel Rosa e a alma brasileira.
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