Coração
Letra
Coração Grande órgão propulsor Transformador do sangue venoso em arterial Coração Não és sentimental Mas entretanto dizem Que és o cofre da paixão Coração Não estás do lado esquerdo Nem tampouco do direito Ficas no centro do peito - eis a verdade! Tu és pro bem-estar do nosso sangue O que a casa de correção É para o bem da humanidadeCoração De sambista brasileiro Quando bate no pulmão Lembra a batida do pandeiro Eu afirmo Sem nenhuma pretensão Que a paixão faz dor no crânio Mas não ataca o coraçãoConheci Um sujeito convencido Com mania de grandeza E instinto de nobreza Que, por saber Que o sangue azul é nobre Gastou todo o seu cobre Sem pensar no seu futuro Não achando Quem lhe arrancasse as veias Onde corre o sangue impuro Viajou a procurar De norte a sul Alguém que conseguisse Encher-lhe as veias Com azul de metileno Pra ficar com sangue azul
História da Canção
Noel Rosa, o Poeta da Vila, tinha uma habilidade ímpar para dissimular críticas sociais e filosofias complexas sob a aparente leveza do samba. "Coração" é um exemplo brilhante dessa maestria. A letra subverte a imagem romântica do coração como centro das emoções, apresentando-o, de forma quase didática, como um órgão puramente fisiológico: "Grande órgão propulsor / Transformador do sangue venoso em arterial".
A ironia de Noel atinge seu auge ao comparar a função do coração para o sangue com a "casa de correção" (presídio) "para o bem da humanidade", uma crítica sutil e mordaz às instituições sociais e, talvez, à própria ideia de "correção" imposta. Essa comparação revela o olhar crítico do sambista sobre as contradições sociais de sua época.
A segunda parte da canção direciona o sarcasmo à vaidade e à pretensão social, personificadas no "sujeito convencido" que anseia por ter "sangue azul" – um símbolo de nobreza e distinção europeia – a ponto de gastar "todo o seu cobre" (dinheiro) e procurar por alguém que o ajude a "encher-lhe as veias / Com azul de metileno". É uma sátira contundente à busca por status e à futilidade das aparências, tão presente no Rio de Janeiro dos anos 1930.
Lançada por volta de 1932, "Coração" reflete o período de efervescência cultural e social no Rio de Janeiro, onde as desigualdades eram palpáveis e Noel, com sua inteligência afiada, as traduzia em versos memoráveis, mantendo seu lugar como um dos maiores cronistas musicais e sociais do Brasil.
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